A caça e o caçador: uma análise crítica da Legislação Brasileira sobre o uso da fauna por populações indígenas e tradicionais na Amazônia

Autores

  • Juarez Carlos Brito Pezzuti Universidade Federal do Pará/UFPA, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/NAEA, Belém/PA, Brasil
  • André Pinassi Antunes Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia/INPA, Brasil
  • Rogério Fonseca Universidade Federal do Amazonas, Laboratório de Interações Fogo, Fauna e Florestas Protegidas/LaIFFF, Departamento de Ciências Florestais, Faculdade de Ciências Agrárias, Manaus/AM, Brasil
  • Marina Regina de Mattos Vieira Instituto Socioambiental/ISA, Boa Vista/RR, Brasil
  • João Valsecchi Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá/IDSM, Grupo de Pesquisa em Ecologia de Vertebrados Terrestres/ECOVERT, Tefé/AM, Brasil
  • Rossano Marchetti Ramos Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis/Ibama, Núcleo de Pesquisa e Monitoramento/Prevfogo, Brasília/DF, Brasil
  • Pedro de Araujo Lima Constantino Pesquisador Independente. Brasília, Distrito Federal
  • João Vitor Campos-Silva Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá/IDSM, Grupo de Pesquisa em Ecologia de Vertebrados Terrestres/ECOVERT, Tefé/AM, Brasil
  • Carlos César Durigan Associação Conservação da Vida Silvestre/WCS Brasil, Manaus/AM, Brasil
  • George Henrique Rebêlo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia/INPA, Laboratório de Manejo de Fauna, Manaus/AM, Brasil
  • Natalia Aparecida Souza Lima Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis/Ibama, Centro de Triagem de Animais Silvestres/ CETAS, Manaus/AM, Brasil
  • Tiago Juruá Damo Ranzi RESEX do Cazumbá-Iracema, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Sena Madureira, Acre.

DOI:

https://doi.org/10.37002/biodiversidadebrasileira.v8i2.779

Palavras-chave:

Caça de subsistência, modos de vida tradicionais, direitos, legalização, Amazônia, segurança alimentar

Resumo

A caça, além de prover o sustento de populações tradicionais, indígenas e não-indígenas, em áreas remotas, vem também assumindo função socialmente estruturante nessas sociedades. Neste artigo, conceituamos a caça de subsistência para além da visão preservacionista, preponderante nos campos das ciências ambientais e jurídicas, e oferecemos uma perspectiva integrada que contempla aspectos ecológicos, sociais, econômicos e legais. Apesar de os impactos demográficos e ecossistêmicos frequentemente atribuídos à caça de subsistência serem bem documentados, mecanismos naturais intrínsecos de recuperação populacional, tais como taxa reprodutiva, dinâmica fonte-sumidouro ou acordos locais, demonstram a resiliência dos sistemas socioecológicos à extração da fauna, constituindo uma grande janela de oportunidades para a conservação de espécies cinegéticas em sistemas de manejo in situ. Embora legalmente o "caçador de subsistência" seja explicitamente definido apenas no Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826/2003), o direito à caça de subsistência é (ou deveria ser) respaldado pelo princípio universal de dignidade da pessoa humana, previsto, mais amplamente, na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas e na Constituição Federal de 1988 (CF/88). Tal direito também é reconhecido pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), abrangendo populações humanas rurais em constante estado de necessidade, seja pela imediata necessidade de saciar a fome (conforme definição na Lei de Crimes Ambientais), seja porque tais populações residem em regiões onde caça e pesca são  geralmente as principais fontes de proteína de origem animal. Por se tratar de uma das mais antigas práticas de obtenção de alimento, inerente à reprodução física e cultural das populações tradicionais, o direito de caçar encontra respaldo, no Brasil, em um arcabouço legal amplo, incluindo a adesão à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Brasil pelo Decreto n° 5.051/2004, à Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT - Decreto n° 6.040/2007) e ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC - Lei n° 9.985/2000). No entanto, as contradições legais (entre leis preservacionistas e as que promovem os direitos humanos e o uso sustentável dos recursos naturais) e sua discricionariedade interpretativa sobre termos que carecem de conceituação ou definição ("caça de subsistência", "estado de necessidade") permanecem, prevalecendo o caráter proibitivo e repressivo à caça de subsistência desde a ção da Lei de Proteção à Fauna (Lei n° 5.197/1967). O resultado é a perpetuação do quadro de inseguridade social, nutricional e jurisdicional dos caçadores de subsistência. A ausência de regulamentação da prática da caça de subsistência impede o desenvolvimento de ferramentas efetivas e participativas de conservação e manejo da fauna, e a consequente valorização dos recursos e ecossistemas naturais.

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Publicado

2018-08-09

Edição

Seção

Caça: subsídios para a gestão de unidades de conservação e manejo de espécies (v. 2)

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